quarta-feira, 23 de junho de 2010

Cantiga de escárnio ou de maldizer

Antes de entender o que é uma cantiga de escárnio ou de maldizer, você precisa entender o que é escárnio ou sátira, que são quase a mesma coisa.

Entenda, através de algumas imagens, o que é uma sátira...



Na cantiga de escárnio o eu-lírico (sujeito que canta o poema) fazia uma sátira a alguma pessoa. Essa sátira era indireta, cheia de duplos sentidos e ironias. Às vezes, a cantiga de escárnio se transformava em cantiga de maldizer, que era quase a mesma coisa. Só que na cantiga de maldizer a sátira era direta e sem duplos sentidos. Na bucha!E adivinhem? Esse tipo de música ainda está presente nos dias de hoje, nas letras de compositores como Raul Seixas (foto).








Cantiga de escárnio ou mal dizer
de João Garcia de Guilhardi


Ai dona fea! Foste-vos queixar

Que vos nunca louv'en meu trobar

Mais ora quero fazer un cantar

En que vos loarei toda via;

E vedes como vos quero loar:

Dona fea, velha e sandia!


Ai dona fea! Se Deus mi pardon!

E pois havedes tan gran coraçon

Que vos eu loe en esta razon,

Vos quero já loar toda via;

E vedes qual será a loaçon:

Dona fea, velha e sandia!


Dona fea, nunca vos eu loei

En meu trobar, pero muito trobei;

Mais ora já en bom cantar farei

En que vos loarei toda via;

E direi-vos como vos loarei:

Dona fea, velha e sandia!


Cantiga de escárnio ou mal dizer
(versão: Ivan Lovison)


Ai dona feia! Foste vos queixar

Que nunca vos louvei em meu cantar

Mas quero fazer agora um cantar

Em que vos louvarei por toda vida;

E verás como vos quero louvar:

Dona feia, velha e insandecida!


Ai dona feia! Que Deus me perdoe!

Pois tu tens um grande coração!

Para que eu louve com toda razão

Vos quero louvar por toda vida;

E verás qual será a canção

Dona feia, velha e insandecida!


Dona feia, nunca eu vos louvei

Em meu cantar, embora muito cantei;

Mas agora mesmo, um bom cantar farei

Em que vos louvarei por toda vida;

E vos direi como vos louvarei:

Dona feia, velha e insandecida!

Cantiga de amigo

Na Cantiga de amigo, o eu-lírico (sujeito que canta o poema - foto) é sempre uma mulher, embora o autor fosse masculino, devido à sociedade feudal que não permitia às mulheres fazerem coisas audaciosas, como por exemplo, compor cantigas.




Nelas, a mulher cantava o seu amor por um amigo, quer dizer, por um namorado, ou melhor, algum carinha por quem ela estivesse apaixonada. Mas, como a época era extremamente conservadora, dizia-se amigo, e não namorado, e muito menos “carinha por quem ela estivesse apaixonada”.










Na cantiga de amigo, a mulher reclamava à sua mãe, a uma amiga, ou então a algum elemento da natureza, como a um vaso de flores, por exemplo, a partida ou a ausência do homem a quem ela amava.








Cantigas de amigo são cantigas de origem popular, que se utilizam de recursos que propiciam facilidade na memorização. Esses recursos são utilizados, ainda hoje, nas canções populares. Mais uma vez constatamos que as coisas não mudaram tanto assim. Quantas músicas atuais podemos dizer que se utilizam dos mesmos recursos e temática das cantigas de amigo lá da idade média. O hit "Beijinho doce" gravado por dezenas de cantores e mais lembrado pela interpretação das "Irmãs Galvão" (foto) é um exemplo disso. Veja um exemplo:





Cantiga de amigo composta por D. Dinis

Ai flores, ai flores do verde pino,

se sabedes novas do meu amigo!

ai Deus, e u é?


Ai flores, ai flores do verde ramo,

se sabedes novas do meu amado!

ai Deus, e u é?


Se sabedes novas do meu amigo,

aquel que mentiu do que pôs comigo!

ai Deus, e u é?


Se sabedes novas do meu amado,

aquel que mentiu do que mi há jurado!

ai Deus, e u é?


Cantiga de amigo composta por D. Dinis
(versão: Ivan Lovison)

Ai flores, ai flores do verde pino,

Sabereis vós noticias do meu amigo!

Ai Deus, onde estará ele?

Ai flores, ai flores do verde ramo,

Sabereis vós notícias do meu amado!

Ai Deus, onde estará ele?

Sabereis vós notícias do meu amigo,

Aquele que mentiu daquela vez em que esteve comigo!

Ai Deus, onde estará ele?

Sabereis vós notícias do meu amado,

Aquele que mentiu aquilo tudo que me havia jurado!

Ai Deus, onde estará ele?

Cantiga de amor


A Cantiga da Guarvaia, também conhecida com Cantiga da Ribeirinha, que foi composta por Paio Soares de Taveirós(na foto retratado por Francisco de Goya, em 1820), provavelmente, no ano de 1198 é o primeiro texto literário da Língua Portuguesa de que se tem registro.



Guarvaia, em Portugal, naquela época, era uma espécie de manto luxuoso.













E Ribeirinha era o apelido da moça para quem essa cantiga foi escrita. E que talvez tivesse esse nome porque morasse ou estivesse na beira de um rio (???)


A cantiga da Guarvaia (ou da Ribeirinha) é uma cantiga de amor. E nas Cantigas de amor o eu-lírico, ou seja, o sujeito que canta o poema, é sempre masculino, ou seja, um homem. É sempre um homem cantando para uma mulher.








O assunto principal dessas cantigas é o sofrimento amoroso do carinha pobre perante uma mulher idealizada e distante. Inspirados pelo regime histórico-econômico da época - o Feudalismo, os poetas, ao comporem suas cantigas sempre se colocavam numa posição abaixo da mulher, numa espécie de vassalagem amorosa. Ou seja, o amor impossível.








Se você prestar atenção até que as coisas não muito de lá pra cá, não é? Os cantores populares no Brasil de hoje, por exemplo, continuam fazendo as velhas "cantigas de amor". É só você dar uma analisada nas letras de pérolas como: Lá vai a chalana, Fuscão preto, Pense em mim... (aliás, essa última canção é tão "cantiga de amigo que no áudio e vídeo abaixo você poderá ouvir a "Cantiga da Guarvaia" cantada com a melodia desse clássico imortalizado pela dupla Leandro e Leonardo)




Cantiga da Guarvaia (ou da Guarvaia)
(original de Paio Soares de Taveirós)


No mundo nom me sei parelha,
mentre me for como me vai;
ca ja moiro por vós, e ai!,
mia senhor branca e vermelha,
queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia?
Mao dia me levantei,
que vos entom nom vi feia!

E, mia senhor, des aquelha,
me foi a mi mui mal di' ai!
E vós, filha de Dom Pai
Moniz, en bem vos semelha
d' haver eu por vós garvaia?
Pois eu, mia senhor, d' alfaia
nunca de vós houve nem hei
valia d'ua correia!



Cantiga da Guarvaia (ou da ribeirinha)
(versão de Ivan Lovison)


No mundo não conheço ninguém

que se compare a mim em infelicidade

Enquanto minha vida continua como vai indo,

porque já morro de amor por vós, e ai!

Minha senhora vestida de branco

e de faces rosadas,

Quereis que eu vos descreva

quando eu vos vi sem manto!


Em infeliz dia me levantei,

pois vos vi bela, e não feia!

E, minha senhora, desde aquele dia, ai!

Tudo ocorreu muito mal para mim,

E vós, filha de Dom Paio Moniz,

parece-vos suficiente e satisfatório,

Que eu deva receber, por vosso intermédio,

uma guarvaia (por pintar vosso retrato);


Pois eu, minha senhora,

como prova de amor,

nunca de vós recebi, nem receberei

Nem o simples valor de uma correia.